Conhecia uma garota que tinha o
corpo tatuado dos pés à cabeça. O topo do couro cabeludo era raspado e nele
havia um mapa, como se o crânio fosse o globo terrestre; as mãos tinham
inscrições, de poemas e de letras de músicas; os pés eram como raízes; os seios
também eram marcados, um deles com estrelas, o outro, com planetas; ao
redor do umbigo, um botão de rosa abria; nas costas havia um enorme dragão em
tinta preta, de asas abertas que se expandiam pelos braços. Um arqueólogo
adoraria vê-la nua, era como observar as linhas de Nazca do céu. Transamos
somente uma vez, e foi a experiência mais singular que tive na cama.
Têmis apareceu
morta há duas semanas. O corpo, inconfundível, flutuava nas margens do Abaiara,
encontrado por dois garotos que pescavam. Foi notícia no jornal, e segundo o
repórter não havia sinais de violência. O pai, advogado do maior escritório da
cidade, exigiu justiça, convencido de que se tratava de um homicídio. Na minha
opinião a tese de assassinato parecia a mais convincente.
Sem que o pai soubesse, contratei
um detetive particular. Seu nome era Wilson, um cinquentão barrigudo, de barba
por fazer, cuja propaganda estava colada nas paradas de ônibus. Paguei em
dinheiro, adiantado, uma parte. O resto seria dado ao fim da investigação. Forneci
a ele o nome completo da vítima, as circunstâncias sabidas da morte, detalhes
sobre a aparência de Têmis e traços de sua personalidade. Wilson me assegurou
que era o melhor do ramo em todo o interior do Rio Grande do Sul e que em uma
semana já teria informações.
***
Estávamos na cama, depois do gozo,
deitados, no calor. Era verão, o ventilador estragado, os lençóis ensopados.
Têmis acendeu a luz de cabeceira, onde havia uma pilha de livros, e pegou o
maço de cigarros. Percebi que a tatuagem logo abaixo do olho direito não era
uma lágrima, mas a conta de um colar, decerto feita de cristal ou vidro. Uma
pérola, talvez?
- O que foi? - ela indagou.
- Estou mapeando as suas tatuagens
- eu disse, tocando a bochecha da garota.
- Gosta?
- Acho admirável. Já escolhi as
minhas favoritas.
Ela sorriu, depois tragou o
cigarro e soprou a fumaça para o alto. Cruzou as pernas nuas.
- Quais são?
A rosa. Um botão abre-se ao redor
do umbigo. As pétalas são delineadas por tinta preta, e preenchidas com tons de
vermelho.
O universo. O
seio direito é repleto de estrelas, com algumas constelações visíveis. Traços e
pontos negros, e uma pintura em aquarela por cima, que vai do azul escuro ao
avermelhado. O seio esquerdo, por sua vez, é um retrato do sistema solar, os
planetas em órbita, como se o bico fosse o Sol.
O dragão. Em preto e branco, cobre
as costas de Têmis. Está, ele mesmo, de costas. A cauda do animal desce até o
cóccix. As asas abrem-se, e parte delas segue pelos ombros e braços. As escamas
são um trabalho que deve ter levado dias, senão meses.
O mapa. É como se o globo
terrestre estivesse retratado fielmente na cabeça, os continentes e os oceanos,
as pequenas ilhas. Alguns poucos territórios estão delineados em suas
fronteiras, sendo eles os lugares já visitados por Têmis. São eles a Argentina,
a Colômbia, o Peru, Portugal, Espanha, Vietnã e Tailândia. Além do Brasil, é
claro.
- Não gosta das minhas pernas? -
ela indagou.
- É uma ideia original tatuar dois
troncos de árvore, mas sendo bem sincero, não acho muito bonito. Esteticamente falando.
Ela riu, apagou o cigarro no
cinzeiro e me deu um beijo quente. Eu acariciei a via láctea, passei a língua
pelo Sol. Ela gemeu baixinho e recomeçamos.
***
- Descobri onde ela esteve na
noite anterior à morte - disse Wilson, sentado na cadeira do escritório. Ele
mantinha os pés sobre a mesa, como aqueles detetives que vemos em filmes. - A
sua amiga foi a uma festa em Porto Alegre. Esteve lá com outras duas garotas.
Parece que uma era a namorada. Entraram no local aproximadamente às onze horas
da noite. Têmis foi embora sozinha, perto das duas da manhã.
- Então a última vez que a viram
foi pela madrugada.
- Sim. Ela saiu da festa e entrou
em um bar, próximo dali. O dono do boteco me disse que a viu chorando, e que
ela pediu uma garrafa de cerveja. Que ela ficou no local até as três da manhã.
Ele mostrou uma gravação. É possível ver Têmis sentada, bebendo sozinha.
- E depois?
- Saiu dali e caminhou pela
avenida Independência. Andou sozinha por um tempo, em direção ao centro da
cidade. Depois, caminhou até a rodoviária.
- Ela pegou um ônibus durante a
madrugada?
- Não. Aguardou a primeira viagem,
às sete da manhã.
- E a autópsia? Você teve acesso?
- A conclusão foi morte por
afogamento.
- Como alguém se mata desta forma?
- Colocando pedras nos bolsos. Não
sei. Use a criatividade.
***
A última vez
em que Têmis e eu nos encontramos foi no aniversário de um amigo em comum.
Fazia um ano e meio desde que eu dormira na casa dela, e falávamos
eventualmente pelas redes sociais. A conversa foi natural, sem qualquer espécie
de clima estranho. Ela disse que iria começar a faculdade na capital, e então mostrou
as novas tatuagens, os novos países que visitara na Ásia e na Europa, além do
Egito, Senegal e Moçambique. Havia, também, uma nova ilha, entre o Mediterrâneo
e o Atlântico. Têmis contou a história:
- Atlântida,
dizem, era um continente, e as pessoas viviam lá em meio a tecnologias
inimagináveis. Até que de um dia para o outro afundaram no oceano, tragados
pelas águas.
- Um terremoto?
- Talvez. Há lendas que falam de
um meteoro. Pode ter sido
punição divina, quem sabe? Eram tão avançados para a época...
- E desapareceram sem deixar
vestígios?
- Como se
fosse mágica.
- Você visitou
muitos países no último ano - eu falei, olhando para o mapa.
Ela sorriu,
passou a mão na cabeça nua e bebeu um gole da cerveja.
***
Fui no
enterro. Estavam o pai, a madrasta, a namorada, amigos que tínhamos em comum e
demais familiares. Uma garota em especial chorava muito. Os amigos tentavam
consolá-la sem sucesso.
***
- O que você
gosta mais em mim, além das tatuagens?
- O sorriso -
eu disse, cruzando as pernas.
- Péssima
resposta. Muito clichê. Escolha outra coisa. E não vale dizer a boca, os olhos
ou as orelhas.
Eu acariciava
a rosa, fazendo círculos em torno do umbigo. Ela acendeu outro cigarro.
- O que eu
mais gosto em você é a forma como você faz amor - eu disse.
Têmis
gargalhou.
- Está
apaixonado? - indagou, soprando a fumaça.
***
Paguei a
última parcela ao detetive, em dinheiro. Era um dia frio, escuro. Eu já estava
convencido da hipótese de suicídio.
- Novas
informações - ele disse. - Ia ligar para falar a respeito, mas como você
apareceu...
- Não tenho
mais interesse. Já é suficiente saber que foi por vontade própria, que não foi
morta nem estuprada por algum bandido.
- Ela estava
com câncer - disse Wilson.
- Câncer?
- Sim. Espalhou por todo o corpo. Já havia atingido o cérebro. Falei por telefone com a namorada. Bastava conversar com ela, é uma pessoa muito acessível. Desculpe, achei que você deveria saber. Um caso simples, no fim das contas. Pelo fato de ela ter a cabeça raspada a maioria das pessoas não se deu conta.
Saí do escritório um pouco zonzo. Caminhei pela avenida principal, tropicando na calçada irregular, depois atravessei praça, rumando em direção às águas do Abaiara. Já era fim de tarde. Dois garotos pescavam. O Sol baixava avermelhado no horizonte, escondendo-se atrás das águas.