segunda-feira, 8 de junho de 2015

RESENHA: Dois irmãos - o romance e a HQ



Dois irmãos foi publicado há 15 anos pela Companhia das Letras.  É o segundo romance do brasileiro Milton Hatoum, e venceu, em 2001, o Prêmio Jabuti. Agora, em 2015, recebe uma versão em quadrinhos pelas mãos dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá. O autor deste site, pondo a preguiça de lado, decidiu experimentar a obra original e a adaptação, uma após a outra, para deixar registradas suas impressões, as diferenças e os encantos de cada experiência, e, talvez, estimular algum curioso a desfrutar de boas leituras.



A obra conta a história de Yakub e Omar. Nascidos em Manaus alguns anos antes da Segunda Guerra, filhos de Halim e Zana, os gêmeos idênticos nada tinham de semelhantes em personalidade. Enquanto Omar mostrava-se impetuoso, intenso, Yakub agia de forma cerebral, aparentemente mais frágil e introspectivo do que o primeiro. Davam-se bem os dois, até o dia em que, ainda crianças, descobriram a paixão pela mesma garota e passaram a alimentar um ciúme quase mortal.

Após um evento trágico, Yakub, o primeiro a nascer, é enviado ao Líbano, país de origem da família. Durante a ausência do primogênito, Omar torna-se o único filho homem da casa. Rânia, a irmã mais nova, Zana, a mãe, e Domingas, uma espécie de empregada (ou serva?), realizam todas as vontades do rapaz, que cresce como um príncipe. O reinado dura até o dia em que Yakub retorna para casa, agora praticamente um homem, de ar distante e sotaque estranho.



Aliás, é com a chegada de Yakub que o livro tem início. Aos poucos, o narrador em primeira pessoa (digamos assim, um membro da família) vai relatando as transformações da sociedade Amazonense, a conflituosa relação entre os gêmeos e as transições vividas pelo próprio Brasil. O tempo avança e recua, oscilando entre a juventude dos pais dos gêmeos e a época da Ditadura Militar, e nessas viagens temporais conhecemos um pouco de cada personagem: Halim e sua fome insaciável pela esposa; Zana, a mãe que ama e protege desmedidamente; Rânia, a filha caçula, tão dedicada à família e perdida entre o amor dos irmãos; Domingas e seu filho sem pai, e uma série de figuras únicas criadas por Hatoum.


Gabriel Bá (esquerda), Fábio Moon e Milton Hatoum no Salão do Livro, em Paris.
Imagem retirada daqui.

Foi nove anos após a publicação de Dois Irmãos que Gabriel e Fábio, gêmeos idênticos, desenhistas e criadores do já consagrado Daytripper (vencedor do Prêmio Eisner, um dos mais importantes no mundo dos quadrinhos) conheceram Milton Hatoum pessoalmente. Dali nasceu a ideia de trabalharem juntos em uma adaptação do romance para a “banda desenhada”. O resultado, asseguro, foi excelente.

Com relação aos aspectos "materiais" da Graphic Novel, à exceção da capa, que poderia ser dura, a transposição gráfica, lançada sob o selo Quadrinhos na Cia., apenas enriquece a obra original. Os desenhos em preto e branco e os traços caprichadíssimos, embora simples, criam a sensação da dualidade entre Yakub e Omar. As luzes e sombras, as paisagens detalhadas, a sensualidade nos corpos dos personagens e a reconstrução de uma Manaus antiga realçam o tom da narrativa de Hatoum. Aliás, enquanto lia o romance, devo admitir, Yakub e Omar pareciam-me duas entidades incorpóreas, com dificuldade os visualizava fisicamente, mas com a versão em HQ essa dimensão tomou forma, talvez reforçando ainda mais o conflito dos opostos/iguais.

A Manaus de Hatoum sob os traços de Moon e Bá.

Importante também esclarecer que a versão em quadrinhos não se trata de mera cópia. Moon e Bá utilizaram seus pincéis e canetas para condensar a narrativa, deixando de fora o que (na minha humilde opinião) parecia desnecessário na versão em prosa, realçando a dramaticidade dos eventos realmente importantes. São experiências diferentes, é óbvio, e sinto que não há como dizer quem melhor contou a história. Fica o mérito do criador, cuja mente elaborou um enredo repleto de detalhes, trabalho que apenas alguém talentoso e detentor de técnica e fôlego poderia realizar; mas também merecem os louros os recriadores, que dão uma nova roupagem, e talvez um frescor importante para o conto de Yakub e Omar.

O que posso fazer é deixar a sugestão de que experimentem ambas as versões (primeiro o livro, depois a graphic novel). Não será uma experiência repetitiva. O romance por vezes pode parecer longo, o que não ocorre na HQ, cuja leitura é muito rápida. Por outro lado, a escrita de Hatoum merece ser desfrutada pelos amantes da literatura. Demorei anos para ingressar no mundo de Dois irmãos¸ e agora posso assegurar, na minha curta vida de leitor, que Milton Hatoum é um dos grandes escritores brasileiros da atualidade. E, se não é ousadia demais, afirmo que Fábio Moon e Gabriel Bá são os melhores quadrinistas que temos hoje.

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