quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Conto: Tatuagem

 

Conhecia uma garota que tinha o corpo tatuado dos pés à cabeça. O topo do couro cabeludo era raspado e nele havia um mapa, como se o crânio fosse o globo terrestre; as mãos tinham inscrições, de poemas e de letras de músicas; os pés eram como raízes; os seios também eram marcados, um deles com estrelas, o outro, com planetas;  ao redor do umbigo, um botão de rosa abria; nas costas havia um enorme dragão em tinta preta, de asas abertas que se expandiam pelos braços. Um arqueólogo adoraria vê-la nua, era como observar as linhas de Nazca do céu. Transamos somente uma vez, e foi a experiência mais singular que tive na cama.

Têmis apareceu morta há duas semanas. O corpo, inconfundível, flutuava nas margens do Abaiara, encontrado por dois garotos que pescavam. Foi notícia no jornal, e segundo o repórter não havia sinais de violência. O pai, advogado do maior escritório da cidade, exigiu justiça, convencido de que se tratava de um homicídio. Na minha opinião a tese de assassinato parecia a mais convincente.

Sem que o pai soubesse, contratei um detetive particular. Seu nome era Wilson, um cinquentão barrigudo, de barba por fazer, cuja propaganda estava colada nas paradas de ônibus. Paguei em dinheiro, adiantado, uma parte. O resto seria dado ao fim da investigação. Forneci a ele o nome completo da vítima, as circunstâncias sabidas da morte, detalhes sobre a aparência de Têmis e traços de sua personalidade. Wilson me assegurou que era o melhor do ramo em todo o interior do Rio Grande do Sul e que em uma semana já teria informações.

 

***

 

Estávamos na cama, depois do gozo, deitados, no calor. Era verão, o ventilador estragado, os lençóis ensopados. Têmis acendeu a luz de cabeceira, onde havia uma pilha de livros, e pegou o maço de cigarros. Percebi que a tatuagem logo abaixo do olho direito não era uma lágrima, mas a conta de um colar, decerto feita de cristal ou vidro. Uma pérola, talvez?

- O que foi? - ela indagou.

- Estou mapeando as suas tatuagens - eu disse, tocando a bochecha da garota.

- Gosta?

- Acho admirável. Já escolhi as minhas favoritas.

Ela sorriu, depois tragou o cigarro e soprou a fumaça para o alto. Cruzou as pernas nuas.

- Quais são?

A rosa. Um botão abre-se ao redor do umbigo. As pétalas são delineadas por tinta preta, e preenchidas com tons de vermelho.

O universo. O seio direito é repleto de estrelas, com algumas constelações visíveis. Traços e pontos negros, e uma pintura em aquarela por cima, que vai do azul escuro ao avermelhado. O seio esquerdo, por sua vez, é um retrato do sistema solar, os planetas em órbita, como se o bico fosse o Sol.

O dragão. Em preto e branco, cobre as costas de Têmis. Está, ele mesmo, de costas. A cauda do animal desce até o cóccix. As asas abrem-se, e parte delas segue pelos ombros e braços. As escamas são um trabalho que deve ter levado dias, senão meses.

O mapa. É como se o globo terrestre estivesse retratado fielmente na cabeça, os continentes e os oceanos, as pequenas ilhas. Alguns poucos territórios estão delineados em suas fronteiras, sendo eles os lugares já visitados por Têmis. São eles a Argentina, a Colômbia, o Peru, Portugal, Espanha, Vietnã e Tailândia. Além do Brasil, é claro.

- Não gosta das minhas pernas? - ela indagou.

- É uma ideia original tatuar dois troncos de árvore, mas sendo bem sincero, não acho muito bonito. Esteticamente falando.

Ela riu, apagou o cigarro no cinzeiro e me deu um beijo quente. Eu acariciei a via láctea, passei a língua pelo Sol. Ela gemeu baixinho e recomeçamos.

 

***


- Descobri onde ela esteve na noite anterior à morte - disse Wilson, sentado na cadeira do escritório. Ele mantinha os pés sobre a mesa, como aqueles detetives que vemos em filmes. - A sua amiga foi a uma festa em Porto Alegre. Esteve lá com outras duas garotas. Parece que uma era a namorada. Entraram no local aproximadamente às onze horas da noite. Têmis foi embora sozinha, perto das duas da manhã.

- Então a última vez que a viram foi pela madrugada.

- Sim. Ela saiu da festa e entrou em um bar, próximo dali. O dono do boteco me disse que a viu chorando, e que ela pediu uma garrafa de cerveja. Que ela ficou no local até as três da manhã. Ele mostrou uma gravação. É possível ver Têmis sentada, bebendo sozinha.

- E depois?

- Saiu dali e caminhou pela avenida Independência. Andou sozinha por um tempo, em direção ao centro da cidade. Depois, caminhou até a rodoviária.

- Ela pegou um ônibus durante a madrugada?

- Não. Aguardou a primeira viagem, às sete da manhã.

- E a autópsia? Você teve acesso?

- A conclusão foi morte por afogamento.

- Como alguém se mata desta forma?

- Colocando pedras nos bolsos. Não sei. Use a criatividade.

 

***

 

A última vez em que Têmis e eu nos encontramos foi no aniversário de um amigo em comum. Fazia um ano e meio desde que eu dormira na casa dela, e falávamos eventualmente pelas redes sociais. A conversa foi natural, sem qualquer espécie de clima estranho. Ela disse que iria começar a faculdade na capital, e então mostrou as novas tatuagens, os novos países que visitara na Ásia e na Europa, além do Egito, Senegal e Moçambique. Havia, também, uma nova ilha, entre o Mediterrâneo e o Atlântico. Têmis contou a história:

- Atlântida, dizem, era um continente, e as pessoas viviam lá em meio a tecnologias inimagináveis. Até que de um dia para o outro afundaram no oceano, tragados pelas águas.

- Um terremoto?

- Talvez. Há lendas que falam de um meteoro. Pode ter sido punição divina, quem sabe? Eram tão avançados para a época...

- E desapareceram sem deixar vestígios?

- Como se fosse mágica.

- Você visitou muitos países no último ano - eu falei, olhando para o mapa.

Ela sorriu, passou a mão na cabeça nua e bebeu um gole da cerveja.

 

***

 

Fui no enterro. Estavam o pai, a madrasta, a namorada, amigos que tínhamos em comum e demais familiares. Uma garota em especial chorava muito. Os amigos tentavam consolá-la sem sucesso.

 

***

 

- O que você gosta mais em mim, além das tatuagens?

- O sorriso - eu disse, cruzando as pernas.

- Péssima resposta. Muito clichê. Escolha outra coisa. E não vale dizer a boca, os olhos ou as orelhas.

Eu acariciava a rosa, fazendo círculos em torno do umbigo. Ela acendeu outro cigarro.

- O que eu mais gosto em você é a forma como você faz amor - eu disse.

Têmis gargalhou.

- Está apaixonado? - indagou, soprando a fumaça.

 

***

 

Paguei a última parcela ao detetive, em dinheiro. Era um dia frio, escuro. Eu já estava convencido da hipótese de suicídio.

- Novas informações - ele disse. - Ia ligar para falar a respeito, mas como você apareceu...

- Não tenho mais interesse. Já é suficiente saber que foi por vontade própria, que não foi morta nem estuprada por algum bandido.

- Ela estava com câncer - disse Wilson.

- Câncer?

- Sim. Espalhou por todo o corpo. Já havia atingido o cérebro. Falei por telefone com a namorada. Bastava conversar com ela, é uma pessoa muito acessível. Desculpe, achei que você deveria saber. Um caso simples, no fim das contas. Pelo fato de ela ter a cabeça raspada a maioria das pessoas não se deu conta.

Saí do escritório um pouco zonzo. Caminhei pela avenida principal, tropicando na calçada irregular, depois atravessei praça, rumando em direção às águas do Abaiara. Já era fim de tarde. Dois garotos pescavam. O Sol baixava avermelhado no horizonte, escondendo-se atrás das águas.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Conto: Noite de espantar demônios


- Merda - ele diz, apeando com agilidade. A lua cheia está coberta por nuvens, e a temperatura é amena.

Ele deixa o cavalo para trás, um animal obediente e de raça pura, e caminha devagar até a residência iluminada a cinquenta metros dali. Durante o percurso tamborila os dedos no coldre da arma. Para a uma distância segura e observa a construção de dois andares, mas não vê qualquer movimento nas janelas. Não há cachorros nem sentinelas. O único som vem dos grilos.

- Merda - fala de novo, desta vez mais incisivo, e cospe.

Chega na varanda. Pisa no primeiro degrau, sente o ranger da tábua. Sobe a escada e para embaixo da soleira. Respira fundo, ajeita o chapéu na cabeça, o lenço no pescoço. As mãos suam e tremem. Ele faz o sinal da cruz e gira a maçaneta.

- Bem-vindo, Josué - diz um homem acomodado em uma poltrona, de frente para a porta. O rosto escondido pelas sombras, ele tem um livro aberto no colo, um tomo espesso. Na mesinha ao lado do assento um lampião queima. Não há qualquer outra mobília na sala.

- Estou aqui - fala Josué, tentando controlar o nervosismo.

- Gosto de homens com palavra - diz o sujeito. Fecha o livro e o coloca na mesa, depois cruza as pernas. Usa roupas fora do comum para a região da fronteira.

- O nosso acordo… - começa Josué.

- O nosso acordo é irrevogável e inadiável.

Josué coloca a mão no revólver.

- Armas assim não são capazes de me atingir - diz o interlocutor. Parece relaxado na poltrona, como se ignorasse a ameaça.

A casa é afastada, pensa Josué, ninguém vai ouvir os tiros. O sujeito ri. Josué saca o revólver e dispara três vezes. Nenhum projétil acerta o alvo.

- É muita ignorância pensar que vai fugir assim, me baleando. Eu sou muito mais antigo do que armas de fogo.

- Eu sei o teu nome - grita Josué, - Se eu souber o teu nome, tu não pode me fazer mal.

- Isso é história de crianças. Acha que dizer meu nome vai me afastar?

- Mammon - diz Josué. - Mammon, o senhor da ganância.

Nada acontece. O sujeito, agora sorridente, apaga o lampião. Josué dá meia-volta e corre o mais rápido que consegue na direção do cavalo. Grita palavras que sabe em latim, trechos de orações, os nomes de Deus. Corre tanto que chega ao animal em poucos segundos. Olha para trás e respira aliviado: não foi seguido. Ele ri, tira o chapéu e seca a testa. Aguarda. A montaria, porém, está assustada, como se não reconhecesse o dono. Relincha, pula, puxa forte os arreios, então vira o corpo e ameaça um coice. Josué o liberta, e o garanhão dispara campo afora.

- Maldito. Volta aqui, animal dos infernos.

- Eu quero somente você - ele ouve. - O cavalo não tem débito comigo.

É como se um leão-baio estivesse espreitando no escuro, pronto para avançar. Um arrepio atravessa a espinha e sobe até os cabelos da nuca. Subitamente o mundo vira de cabeça para baixo e Josué está no chão. É puxado pelos pés, arrastado como um saco vazio. Tenta se agarrar no capim, socar as mãos que o seguram, chutar e gritar.

- Ninguém vai te ouvir.

Josué desiste, fecha os olhos e reza. Depois, sente uma pancada na moleira.

Abre os olhos. Está dependurado pelos tornozelos, que doem, esmagados por elos de corrente. O sangue está todo na cabeça, que lateja, muito pior que ressaca de pinga. O luar entra por algumas frestas. Olha ao redor, parece que está em um galpão. O cheiro é de bosta de cavalo, feno e mijo de zorrilho. Ele tenta alcançar o solo, estica as pontas dos dedos, porém as mãos não chegam. Inclina o corpo, para lá e para cá, pegando impulso, vendo se consegue se soltar, mas o balançar faz doer ainda mais os pés.

- Maldito - ele grita, ao ver que está bem preso.

Ninguém responde.

Josué tira o revólver da cintura. Contrai o abdome, ergue o tronco e atira contra a corrente. Erra todos os disparos, e o último acerta no próprio pé. Grita, amaldiçoa, se encolhe de dor. Fica ainda mais bravo, pega as últimas balas da cartucheira, e derruba algumas no chão enquanto alimenta o tambor.

- Pode ficar quieto? - alguém diz.

- Quem fala? - ele pergunta assustado, com a voz esganiçada. Quase chora. Acertei o dedão do pé. O sangue quente desce por dentro da bombacha.

- Apenas fique quieto, por favor. Não há como escapar.

A voz é rouca e profunda. Deve ser um homem grande e forte.

- Quem é você? - indaga Josué.

- Ninguém.

- Não conheço nenhum Ninguém.

Ele tenta enxergar o outro homem, mas não consegue distingui-lo na penumbra.

- Eu não sou muito popular por estas bandas. Mas me conte sobre você. Por que está aqui?

Josué tenta identificar de onde vem o som. Responde:

- Fiz um acordo, mas ele não foi cumprido como o combinado.


Josué termina de preparar o revólver, engatilhando a arma, e diz:

- Vou sair daqui. O pacto não foi cumprido, então não tenho que pagar.

Dispara três vezes contra a corrente. Resta uma bala. Tenta forçar os elos com um impulso, dois.

- Esqueça se acha que vai enganar um demônio usando métodos tradicionais. Esta corrente você nunca romperá. Não com arma comum.

- Então como podemos sair daqui?

- Mancando – diz o desconhecido, dando uma risada digna de um leão.

Josué quer chorar de dor.

- Se eu dissesse que há uma forma, Josué, de escapar...

- Eu não disse o meu nome. Como você sabe o meu nome?

- Você deve ter dito em algum momento. Mas não interessa, o importante é a proposta que vou fazer. Quer ouvi-la?

- Tanto faz.

- Eu proponho que a sua dívida seja transferida.

- Como se endossasse?

- Isso, como se um demônio transferisse o que você deve para outro demônio. Um demônio mais poderoso que Mammon, que não pode ser contestado.

Josué está ofegante, tonto, cansado. Sangue desce pelo seu rosto até os cabelos. O pé esquerdo lateja e parece prestes a explodir. Ele não consegue acreditar no que está acontecendo, é como um sonho, ou um pesadelo.

- Eu seria libertado?

- Sim. Mas quando chegasse a hora teria de entregar a sua alma, e sem chance de alterar o contrato.

- Quanto tempo eu poderia viver?

- A vida toda, até a morte. E quando morrer, a tua alma será de Azazel.

- E eu poderia me vingar de Mammon?

- Sim. Esta é uma das condições, você deve acabar com Mammon esta noite.

- Então me liberte destas correntes – pede Josué, e os elos se desfazem como que por mágica. Ele cai no chão, desajeitado.

- Vá – diz a voz, - e não desperdice a única bala que há no revólver.

Josué levanta, mal apoiando o peso nos pés e pernas dormentes. Sacode a cabeça, que respinga sangue. Perde um pouco o equilíbrio e senta. Confere as botas, e há de fato um buraco no pé esquerdo.

- Apresse-se, antes que Mammon retorne.

Josué levanta com dificuldade, respira fundo e manca para fora da construção. Abre a porta de madeira do galpão e se vê livre. A lua banha o campo, e lá, a muitos e muitos metros de distânia, ele distingue a sombra da casa.

- Como eu devo matar um demônio?

- Com a bala – dizem atrás dele.

Josué olha para o revólver.

- Estamos de acordo? - indaga a voz.

Josué vira. Então vê a sombra de uma criatura enorme, humanoide, a cabeça animalesca. Chifres se projetam para o alto.

- Meu nome é Azazel, e agora você me pertence, Josué.

A pele da mão queima, e Josué vê surgir ali um símbolo de bode, como se feito com ferro em brasa. Josué beija o ferimento.

- Quando o tempo chegar, buscarei a sua alma.

Então o ser demoníaco desaparece, e fica no ar um cheiro fétido.

Olha ao redor, ouve os grilos e sente no rosto uma brisa quente. A lua está plena. Aquela sensação de se ver cercado por um predador já não existe. Acaricia o revólver no coldre, ajeita o lenço no pescoço. O chapéu faz falta. Caminha devagar, saltando, e toma distância do galpão. Observa a casa, lá adiante, a uns cinquenta metros. Pensa enxergar uma luz fraca em uma das janelas, e talvez uma silhueta.

- Merda – ele diz e cospe, e depois sai mancando na direção oposta à procura do cavalo.





segunda-feira, 8 de junho de 2015

RESENHA: Dois irmãos - o romance e a HQ



Dois irmãos foi publicado há 15 anos pela Companhia das Letras.  É o segundo romance do brasileiro Milton Hatoum, e venceu, em 2001, o Prêmio Jabuti. Agora, em 2015, recebe uma versão em quadrinhos pelas mãos dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá. O autor deste site, pondo a preguiça de lado, decidiu experimentar a obra original e a adaptação, uma após a outra, para deixar registradas suas impressões, as diferenças e os encantos de cada experiência, e, talvez, estimular algum curioso a desfrutar de boas leituras.



A obra conta a história de Yakub e Omar. Nascidos em Manaus alguns anos antes da Segunda Guerra, filhos de Halim e Zana, os gêmeos idênticos nada tinham de semelhantes em personalidade. Enquanto Omar mostrava-se impetuoso, intenso, Yakub agia de forma cerebral, aparentemente mais frágil e introspectivo do que o primeiro. Davam-se bem os dois, até o dia em que, ainda crianças, descobriram a paixão pela mesma garota e passaram a alimentar um ciúme quase mortal.

Após um evento trágico, Yakub, o primeiro a nascer, é enviado ao Líbano, país de origem da família. Durante a ausência do primogênito, Omar torna-se o único filho homem da casa. Rânia, a irmã mais nova, Zana, a mãe, e Domingas, uma espécie de empregada (ou serva?), realizam todas as vontades do rapaz, que cresce como um príncipe. O reinado dura até o dia em que Yakub retorna para casa, agora praticamente um homem, de ar distante e sotaque estranho.



Aliás, é com a chegada de Yakub que o livro tem início. Aos poucos, o narrador em primeira pessoa (digamos assim, um membro da família) vai relatando as transformações da sociedade Amazonense, a conflituosa relação entre os gêmeos e as transições vividas pelo próprio Brasil. O tempo avança e recua, oscilando entre a juventude dos pais dos gêmeos e a época da Ditadura Militar, e nessas viagens temporais conhecemos um pouco de cada personagem: Halim e sua fome insaciável pela esposa; Zana, a mãe que ama e protege desmedidamente; Rânia, a filha caçula, tão dedicada à família e perdida entre o amor dos irmãos; Domingas e seu filho sem pai, e uma série de figuras únicas criadas por Hatoum.


Gabriel Bá (esquerda), Fábio Moon e Milton Hatoum no Salão do Livro, em Paris.
Imagem retirada daqui.

Foi nove anos após a publicação de Dois Irmãos que Gabriel e Fábio, gêmeos idênticos, desenhistas e criadores do já consagrado Daytripper (vencedor do Prêmio Eisner, um dos mais importantes no mundo dos quadrinhos) conheceram Milton Hatoum pessoalmente. Dali nasceu a ideia de trabalharem juntos em uma adaptação do romance para a “banda desenhada”. O resultado, asseguro, foi excelente.

Com relação aos aspectos "materiais" da Graphic Novel, à exceção da capa, que poderia ser dura, a transposição gráfica, lançada sob o selo Quadrinhos na Cia., apenas enriquece a obra original. Os desenhos em preto e branco e os traços caprichadíssimos, embora simples, criam a sensação da dualidade entre Yakub e Omar. As luzes e sombras, as paisagens detalhadas, a sensualidade nos corpos dos personagens e a reconstrução de uma Manaus antiga realçam o tom da narrativa de Hatoum. Aliás, enquanto lia o romance, devo admitir, Yakub e Omar pareciam-me duas entidades incorpóreas, com dificuldade os visualizava fisicamente, mas com a versão em HQ essa dimensão tomou forma, talvez reforçando ainda mais o conflito dos opostos/iguais.

A Manaus de Hatoum sob os traços de Moon e Bá.

Importante também esclarecer que a versão em quadrinhos não se trata de mera cópia. Moon e Bá utilizaram seus pincéis e canetas para condensar a narrativa, deixando de fora o que (na minha humilde opinião) parecia desnecessário na versão em prosa, realçando a dramaticidade dos eventos realmente importantes. São experiências diferentes, é óbvio, e sinto que não há como dizer quem melhor contou a história. Fica o mérito do criador, cuja mente elaborou um enredo repleto de detalhes, trabalho que apenas alguém talentoso e detentor de técnica e fôlego poderia realizar; mas também merecem os louros os recriadores, que dão uma nova roupagem, e talvez um frescor importante para o conto de Yakub e Omar.

O que posso fazer é deixar a sugestão de que experimentem ambas as versões (primeiro o livro, depois a graphic novel). Não será uma experiência repetitiva. O romance por vezes pode parecer longo, o que não ocorre na HQ, cuja leitura é muito rápida. Por outro lado, a escrita de Hatoum merece ser desfrutada pelos amantes da literatura. Demorei anos para ingressar no mundo de Dois irmãos¸ e agora posso assegurar, na minha curta vida de leitor, que Milton Hatoum é um dos grandes escritores brasileiros da atualidade. E, se não é ousadia demais, afirmo que Fábio Moon e Gabriel Bá são os melhores quadrinistas que temos hoje.

terça-feira, 28 de abril de 2015

RESENHA: Cheiro de Goiaba - conversas de Gabriel García Márquez com Plinio Apuleyo Mendoza

A capa da sétima edição pela Editora Record

Em 17 de abril de 2015 completamos 365 dias sem Gabriel García Márquez (mas acho que ainda não me recuperei). Um dos meus escritores favoritos, o colombiano de Aracataca viveu 87 anos. Autor de trabalhos consagrados como Cem anos de solidão, Crônica de uma morte anunciada, O Amor nos tempos do cólera e Ninguém escreve ao Coronel, venceu o Prêmio Nobel em 1982 pelo conjunto da obra. Sua escrita é cheia de poesia e ternura; fala do Amor, da Solidão, da Pobreza e da Guerra, e reflete eventos da infância do artista e da história da América Latina. Mas é em Cheiro de Goiaba, obra não-ficcional, que o leitor mais curioso pode ter contato com o processo criativo do gênio.


Olha que cara de velhinho simpático :D
(crédito: AFP)


Cheiro de Goiaba, lançado em 1982, agora em sua sétima edição pela Editora Record, é uma conversa entre amigos.  Em tópicos (capítulos), como "Origens", "O ofício", "A obra", "Política" e "Mulheres", García Márquez responde perguntas muito bem formuladas por Plinio Apuleyo Mendoza, também colombiano, escritor e jornalista. Íntimos, os conterrâneos se conheceram em um café na cidade de Bogotá, quando Gabriel ainda tinha vinte anos, e Plinio, dezesseis.

Já nas primeiras páginas do livro, em um breve trecho narrativo antes de iniciar a entrevista propriamente dita, lemos:

"A avó governava a casa, uma casa que depois ele recordaria como grande, antiga, com um pátio onde ardia nas noites de muito calor o aroma de um jasmineiro, e inúmeros quartos onde suspiravam às vezes os mortos. Para D. Tranquilina, cuja família provinha de Goajira, uma península de areais ardentes, de índios, contrabandistas e bruxos, não havia uma fronteira muito definida entre os mortos e os vivos." (p.11)

Não há como não relembrar de Ursula, a matriarca de Cem anos de solidão, e talvez de minha própria infância e avós. Aliás, em um trecho posterior, o escritor afirma: "Na realidade, Ursula é para mim a mulher ideal, no sentido de que é o paradigma da mulher essencial, tal como a imagino"Assim, intercalando a narração do passado com a entrevista (em diálogo), a história de Gabo vai sendo construída, e sua personalidade revelada aos poucos, permitindo que compreendamos melhor sua criação e o "ofício mais solitário do mundo", como ele mesmo diz.


García Márquez e Apuleyo em um café de Paris, em 1981,
um ano antes do lançamento de Cheiro de Goiaba.
(crédito ABC)

Descobri Cheiro de Goiaba enquanto estudava Gesto Inacabado, uma excelente obra a respeito do processo de criação artística (autoria de Cecília Almeida Salles). Imediatamente saí correndo atrás de um exemplar, precisava adentrar na mente do cara, saber os "porquês" e os "comos". Por coincidência, encomendei o livro na internet na mesma época em que o recebi de presente. E asseguro: após ler Cheiro de Goiaba, não somente aprendi lições indeléveis sobre a vida de escritor, mas também passei a admirar ainda mais o Sr. García Márquez como cidadão do mundo, jornalista, filho, marido, pai e amigo. Muito curioso, aliás, saber que tudo iniciou de forma descompromissada...

"Comecei a escrever por acaso, talvez só para demonstrar a um amigo que a minha geração era capaz de produzir escritores. Depois caí na armadilha de continuar escrevendo por prazer e depois na outra armadilha de que nada me agradava mais no mundo do que escrever." (p.37)

Enfim, após essa breve recomendação de leitura prazerosíssima (fundamental para quem já escreve ou quer escrever), deixo mais uma dica: "Gabo: Memórias de uma vida mágica", uma Graphic Novel trazida ao Brasil pela Editora Veneta. Nela, somos convidados a vivenciar alguns dos momentos mais importantes da vida de Gabriel García Márquez, um dos maiores nomes da literatura do século XX e alicerce do realismo mágico.


Trecho da HQ, em que Gabo e o avô caminham
por entre as famosas borboletas amarelas que seguiam
Maurício Babilônia em Cem anos de solidão. Bonito, não?


Fique agora com o trailer do filme "O Amor nos Tempos do Cólera", drama lançado em 2007, baseado no romance de 1985, e estrelado por Javier Bardem (as mulheres suspiram) e Fernanda Montenegro:



segunda-feira, 30 de março de 2015

RESENHA: O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação

          
 
A capa da 1ª edição brasileira, sob o selo Alfaguara.

O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação é a obra mais recente do autor japonês Haruki Murakami publicada no Brasil. O livro de 328 páginas e capa peculiar vendeu um milhão de cópias no ano de lançamento (2013), e pode ser um bom primeiro contato com o escritor best-seller.

A narrativa gira em torno de Tsukuru Tazaki, um sujeito de 36 anos que vive em Tóquio e trabalha projetando e construindo estações de trem. Tsukuru leva uma vida simples, sem grandes ambições. Seu nome significa “Construir”, mas o sobrenome não tem um sentido especial. No passado, porém, existe uma história cheia de cores, nomes e um mistério não solucionado.

Envolvido em uma atividade voluntária nas férias de verão, quando ainda frequentava a escola na cidade de Nagoia, o jovem Tsukuru conheceu quatro novos amigos. Por acaso, eles continham nomes coloridos: Akamatsu, ou “pinheiro vermelho”, era um aluno brilhante; Ômi, ou “mar azul”, era atacante e capitão do time de rúgbi do colégio; Shirane, ou “raiz branca”, era bela e tocava o piano talentosamente; e por fim havia Kurono, ou “campo preto”, uma jovem independente, irônica, leitora ávida. Os cinco - Tsukuru, o incolor, Preta, Branca, Azul e Vermelho - permaneceram unidos por muitos anos. Eram inseparáveis, completavam-se. Até que um dia, misteriosamente, todos decidiram romper o vínculo com o protagonista, deixando-o solitário e sem respostas.

Pois bem... A história tem início em um encontro entre o "Construtor" e Sara, uma mulher dois anos mais velha que trabalha em uma agência de viagens. Ambos estão namorando há pouco tempo - não um namoro “à brasileira”, mas tímido e sutil como podemos esperar dos japoneses. Eles conversam longamente, ele revela um pouco de seu passado, ela se mostra interessada e bastante opinativa. No decorrer das semanas os jantares vão se repetindo, mais informações nos são transmitidas, e após uma certa insistência Sara convence Tsukuru a buscar os quatro coloridos, descobrir por qual motivo o haviam excluído do círculo de amizade, investigar o que haviam feito de suas vidas. Tem início então a peregrinação de Tsukuru, que sai à procura de Vermelho, Azul, Branca e Preta, sobre cujo destino ele jamais se informara.

O enredo, como já pude sentir em Após o anoitecer, é permeado de mistérios. Aos poucos são revelados aspectos obscuros dos personagens, suas motivações secretas, lembranças e memórias muito bem guardadas. Tsukuru é, talvez, ainda que incolor, o mais compreensível dos personagens. 

Há na narrativa, também, um toque de fantástico, situações inexplicáveis, pessoas misteriosas. Alguns comparam Murakami a Kafka... Eu nada sei, pouco conheço do escritor tcheco, mas, de fato, o japonês é um expert em contar histórias. Usa uma linguagem clara, constrói diálogos naturais e evita descrições exageradas. O ritmo, contrariando o que talvez alguns possam esperar de um oriental, não é lento, embora o plot seja tecido com precisão. E tudo ocorre ao som de jazz e música clássica (e até mesmo Tom Jobim!). 

O multicolorido Murakami. Foto de Elena Seibert/AP

É interessante frisar que o autor, hoje com 66 anos de idade, jamais pensara em ser escritor, até que um dia, enquanto assistia a um jogo de baseball (ele é fã do esporte), no momento de uma tacada, teve uma epifania: Deu-se conta de que poderia escrever um romance. Publicou seu primeiro livro em 1979, Hear the Wind Sing, ainda não disponível no Brasil. Hoje, tendo conquistado leitores no mundo todo, traduzido para mais de 50 línguas, dono de um estilo diferenciado, arrisco a dizer que, em alguns anos, Murakami será consagrado com o Nobel de Literatura.

Para quem ficou curioso, recomendo visitar o site oficial do escritor, bem como ouvir ao podcast 30:Min sobre Haruki Murakami. Claro, também, deixo a sugestão de leitura do próprio livro resenhado. Ainda não me aventurei na trilogia 1Q84, super badalada, cujo título serve de homenagem a George Orwell, mas talvez o futuro permita que tratemos do assunto. Aliás, falando em Orwell, ainda farei uma resenha sobre A revolução dos bichos. Aguardem!

              

quinta-feira, 26 de março de 2015

Reinauguração e Resenha do livro Farenheit 451, de Ray Bradbury

Agora com outra proposta - publicar resenhas de livros e textos autorais - resolvi dar o pontapé inicial com uma história do autor norte-americano Ray Bradbury: Farenheit 451, clássico das distopias. 

Espero que você, leitor, goste da nova formatação do site. Dê suas sugestões, acompanhe as recomendações e faça comentários. O foco é compartilhar experiências de leitura. Um grande abraço!


RESENHA: Farenheit 451, de Ray Bradbury

Imagem da adaptação da obra para os quadrinhos, parceria
entre o ilustrador Tim Hamilton e o próprio Bradbury.

Farenheit 451, romance distópico publicado em 1953, é fruto de uma das mentes mais importantes da ficção científica: o norte-americano Ray Douglas Bradbury. De poucas páginas, dividido em três atos, o livro conta a história de uma sociedade que aboliu os livros e de um homem que descobre o valor das páginas escritas. O título é uma alusão à temperatura em que folhas de papel se incendeiam, o equivalente a 233 graus celsius.

O mundo vive na iminência de uma guerra, e Guy Montag, bombeiro, assim como foram o pai e o avô antes dele, é um sujeito orgulhoso do que faz. Há dez anos seu trabalho é incinerar livros. Sim! Em Farenheit 451 os bombeiros possuem a terrível tarefa de destruir toda e qualquer obra literária, equipados com seus lança-chamas e seus carros incendiários, atuando como uma brigada de repressão. Casado com Mildred, mulher de pouco afeto, alienada e superficial, o protagonista é apenas mais um mantenedor do status quo.

Certa noite, quando retorna para casa após o trabalho, Guy conhece Clarisse McClellan, garota que mora na vizinhança, e que vem de uma família diferente das outras. Após um breve diálogo com a jovem a semente da dúvida brota na cabeça de Montag e a transformação tem início.

Com olhar curioso e questionador, o bombeiro passa a interessar-se pelos livros. Tenta salvá-los das chamas, esconde-os dos olhos das pessoas, decifra as páginas que abre. Então, ao encontrar-se com Faber, ex-professor de inglês que vive recluso, Guy tem os horizontes expandidos. Em um diálogo entre os dois, o autor parece falar através do professor: 
“Precisamos de conhecimento. E talvez em mil anos possamos escolher precipícios menores de onde saltar. Os livros servem para nos lembrar quanto somos estúpidos e tolos. São o guarda pretoriano de César, cochichando enquanto o desfile ruge pela avenida: “Lembre-se, César, tu és mortal”. A maioria de nós não pode sair correndo por aí, falar com todo mundo, conhecer todas as cidades do mundo. Não temos tempo, dinheiro ou tantos amigos assim. As coisas que você está procurando, Montag, estão no mundo, mas a única possibilidade que o sujeito comum terá de ver noventa e nove por cento delas está num livro”. 
Ambos, então, tecem um plano para salvar e divulgar os livros de um mundo cretino que aboliu o deleite literário.

A cada passo Montag torna-se uma ameaça. Em seu encalço, o Capitão Beatty, Chefe dos bombeiros. No controle de um Sabujo Mecânico, robô de oito patas e aparatos letais,  o Capitão mantém a ordem, garantindo que os cidadãos não sejam corrompidos pela literatura, ou mesmo eliminando aqueles que põe em "risco" a sociedade.

Farenheit 451, segundo o próprio Bradbury, é um romance de “centavos”, escrito numa máquina de escrever alugada em uma biblioteca de Universidade, e nasceu primeiramente como um conto, depois vindo a tornar-se novela e, finalmente, um romance breve. Apaixonado por conhecimento e pela literatura, o escritor imaginou um futuro em que as mídias de massa ocuparam todos os momentos de lazer das pessoas, em que os livros foram banidos, em que as relações humanas são superficiais. Critica, claramente, a televisão e a tecnologia, que privam o indivíduo de exercer a escolha e o pensamento crítico. Mildred, a esposa de Montag, é o retrato perfeito do cidadão manipulado pelo sistema midiático.

Agora chega, senão vou acabar dando spoilers!

Cabe informar ao leitor que Farenheit 451 foi transformado em peça de teatro pelo próprio Bradbury, que atualizou e aprofundou a trama, adicionando diálogos e cenas novas. Não somente, o romance foi adaptado ao cinema pelo diretor François Truffaut, em 1966 (e, falando em cinema, Bradbury recebeu o Oscar em 1956 pelo roteiro do filme Moby Dick, dirigido por John Huston).

Para quem deseja maior contato com a obra de Ray Bradbury, falecido em 2012 aos noventa e um anos, fica a recomendação do clássico Crônicas Marcianas, bem como o excelente A cidade inteira dorme, que estão disponíveis em língua portuguesa.

Por enquanto é só. Um grande abraço e até a próxima resenha!