-
Merda - ele diz, apeando com agilidade. A lua cheia está coberta por
nuvens, e a temperatura é amena.
Ele
deixa o cavalo para trás, um animal obediente e de raça pura, e
caminha devagar até a residência iluminada a cinquenta metros dali.
Durante o percurso tamborila os dedos no coldre da arma. Para a uma
distância segura e observa a construção de dois andares, mas não
vê qualquer movimento nas janelas. Não há cachorros nem
sentinelas. O único som vem dos grilos.
-
Merda - fala de novo, desta vez mais incisivo, e cospe.
Chega
na varanda. Pisa no primeiro degrau, sente o ranger da tábua. Sobe a
escada e para embaixo da soleira. Respira fundo, ajeita o chapéu na
cabeça, o lenço no pescoço. As mãos suam e tremem. Ele faz o
sinal da cruz e gira a maçaneta.
- Bem-vindo, Josué - diz um homem
acomodado em uma poltrona, de frente para a porta. O rosto escondido
pelas sombras, ele tem um livro aberto no colo, um tomo espesso. Na
mesinha ao lado do assento um lampião queima. Não há qualquer
outra mobília na sala.
-
Estou aqui - fala Josué, tentando controlar o nervosismo.
-
Gosto de homens com palavra - diz o sujeito. Fecha o livro e o coloca
na mesa, depois cruza as pernas. Usa roupas fora do comum para a
região da fronteira.
-
O nosso acordo… - começa Josué.
-
O nosso acordo é irrevogável e inadiável.
Josué
coloca a mão no revólver.
-
Armas assim não são capazes de me atingir - diz o interlocutor.
Parece relaxado na poltrona, como se ignorasse a ameaça.
A
casa é afastada, pensa Josué, ninguém vai ouvir os
tiros. O sujeito ri. Josué saca o revólver e dispara três
vezes. Nenhum projétil acerta o alvo.
-
É muita ignorância pensar que vai fugir assim, me baleando. Eu sou
muito mais antigo do que armas de fogo.
-
Eu sei o teu nome - grita Josué, - Se eu souber o teu nome, tu não
pode me fazer mal.
-
Isso é história de crianças. Acha que dizer meu nome vai me
afastar?
-
Mammon - diz Josué. - Mammon, o senhor da ganância.
Nada
acontece. O sujeito, agora sorridente, apaga o lampião. Josué dá
meia-volta e corre o mais rápido que consegue na direção do
cavalo. Grita palavras que sabe em latim, trechos de orações, os
nomes de Deus. Corre tanto que chega ao animal em poucos segundos.
Olha para trás e respira aliviado: não foi seguido. Ele ri, tira o
chapéu e seca a testa. Aguarda. A montaria, porém, está assustada,
como se não reconhecesse o dono. Relincha, pula, puxa forte os
arreios, então vira o corpo e ameaça um coice. Josué o liberta, e
o garanhão dispara campo afora.
-
Maldito. Volta aqui, animal dos infernos.
-
Eu quero somente você - ele ouve. - O cavalo não tem débito
comigo.
É
como se um leão-baio estivesse espreitando no escuro, pronto para
avançar. Um arrepio atravessa a espinha e sobe até os cabelos da
nuca. Subitamente o mundo vira de cabeça para baixo e Josué está
no chão. É puxado pelos pés, arrastado como um saco vazio. Tenta
se agarrar no capim, socar as mãos que o seguram, chutar e gritar.
-
Ninguém vai te ouvir.
Josué
desiste, fecha os olhos e reza. Depois, sente uma pancada na moleira.
Abre
os olhos. Está dependurado pelos tornozelos, que doem, esmagados por
elos de corrente. O sangue está todo na cabeça, que lateja, muito
pior que ressaca de pinga. O luar entra por algumas frestas. Olha ao
redor, parece que está em um galpão. O cheiro é de bosta de
cavalo, feno e mijo de zorrilho. Ele tenta alcançar o solo, estica
as pontas dos dedos, porém as mãos não chegam. Inclina o corpo,
para lá e para cá, pegando impulso, vendo se consegue se soltar,
mas o balançar faz doer ainda mais os pés.
-
Maldito - ele grita, ao ver que está bem preso.
Ninguém
responde.
Josué
tira o revólver da cintura. Contrai o abdome, ergue o tronco e atira
contra a corrente. Erra todos os disparos, e o último acerta no
próprio pé. Grita, amaldiçoa, se encolhe de dor. Fica ainda mais
bravo, pega as últimas balas da cartucheira, e derruba algumas no
chão enquanto alimenta o tambor.
-
Pode ficar quieto? - alguém diz.
-
Quem fala? - ele pergunta assustado, com a voz esganiçada. Quase
chora. Acertei o dedão do pé. O
sangue quente desce por dentro da bombacha.
-
Apenas fique quieto, por favor. Não há como escapar.
A
voz é rouca e profunda. Deve ser um homem grande e forte.
-
Quem é você? - indaga Josué.
-
Ninguém.
-
Não conheço nenhum Ninguém.
Ele
tenta enxergar o outro homem, mas não consegue distingui-lo na
penumbra.
-
Eu não sou muito popular por estas bandas. Mas me conte sobre você.
Por que está aqui?
Josué
tenta identificar de onde vem o som. Responde:
-
Fiz um acordo, mas ele não foi cumprido como o combinado.
Josué
termina de preparar o revólver, engatilhando a arma, e diz:
-
Vou sair daqui. O pacto não foi cumprido, então não tenho que
pagar.
Dispara
três vezes contra a corrente. Resta uma bala. Tenta forçar os elos
com um impulso, dois.
-
Esqueça se acha que vai enganar um demônio usando métodos
tradicionais. Esta corrente você nunca romperá. Não com arma
comum.
-
Então como podemos sair daqui?
-
Mancando – diz o desconhecido, dando uma risada digna de um leão.
Josué
quer chorar de dor.
-
Se eu dissesse que há uma forma, Josué, de escapar...
-
Eu não disse o meu nome. Como você sabe o meu nome?
-
Você deve ter dito em algum momento. Mas não interessa, o
importante é a proposta que vou fazer. Quer ouvi-la?
-
Tanto faz.
-
Eu proponho que a sua dívida seja transferida.
-
Como se endossasse?
-
Isso, como se um demônio transferisse o que você deve para outro
demônio. Um demônio mais poderoso que Mammon, que não pode ser
contestado.
Josué
está ofegante, tonto, cansado. Sangue desce pelo seu rosto até os
cabelos. O pé esquerdo lateja e parece prestes a explodir. Ele não
consegue acreditar no que está acontecendo, é como um sonho, ou um
pesadelo.
-
Eu seria libertado?
-
Sim. Mas quando chegasse a hora teria de entregar a sua alma, e sem
chance de alterar o contrato.
-
Quanto tempo eu poderia viver?
-
A vida toda, até a morte. E quando morrer, a tua alma será de
Azazel.
-
E eu poderia me vingar de Mammon?
-
Sim. Esta é uma das condições, você deve acabar com Mammon esta
noite.
-
Então me liberte destas correntes – pede Josué, e os elos se
desfazem como que por mágica. Ele cai no chão, desajeitado.
-
Vá – diz a voz, - e não desperdice a única bala que há no
revólver.
Josué
levanta, mal apoiando o peso nos pés e pernas dormentes. Sacode a
cabeça, que respinga sangue. Perde um pouco o equilíbrio e senta.
Confere as botas, e há de fato um buraco no pé esquerdo.
-
Apresse-se, antes que Mammon retorne.
Josué
levanta com dificuldade, respira fundo e manca para fora da
construção. Abre a porta de madeira do galpão e se vê livre. A
lua banha o campo, e lá, a muitos e muitos metros de distânia, ele
distingue a sombra da casa.
-
Como eu devo matar um demônio?
-
Com a bala – dizem atrás dele.
Josué
olha para o revólver.
-
Estamos de acordo? - indaga a voz.
Josué
vira. Então vê a sombra de uma criatura enorme, humanoide, a cabeça
animalesca. Chifres se projetam para o alto.
-
Meu nome é Azazel, e agora você me pertence, Josué.
A
pele da mão queima, e Josué vê surgir ali um símbolo de bode,
como se feito com ferro em brasa. Josué beija o ferimento.
-
Quando o tempo chegar, buscarei a sua alma.
Então
o ser demoníaco desaparece, e fica no ar um cheiro fétido.
Olha
ao redor, ouve os grilos e sente no rosto uma brisa quente. A lua
está plena. Aquela sensação de se ver cercado por um predador já
não existe. Acaricia o revólver no coldre, ajeita o lenço no
pescoço. O chapéu faz falta. Caminha devagar, saltando, e toma
distância do galpão. Observa a casa, lá adiante, a uns cinquenta
metros. Pensa enxergar uma luz fraca em uma das janelas, e talvez uma
silhueta.
-
Merda – ele diz e cospe, e depois sai mancando na direção oposta
à procura do cavalo.
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